domingo, 22 de agosto de 2010

O Domingo e o discurso: O corpo a roupa e a liberdade.

O Corpo é a forma material de nosso ser. É a imagem que torna concreta a nossa existência, a massa de osso e carne que nos torna seres sociais. Mas o corpo per se não carrega e demonstra nossos significados pessoais, não acentua nossas características psicológicas e não nos torna objetos individuais.

Mesmo que nossas feições, posturas, traços da idade e etc., marquem nossa individualidade, isso não parece o suficiente para que o ser se reconheça em uma sociedade. Por isso o ser social sempre buscou formas de ‘’customizar’’ sua aparência. Seja por meio de modificações corporais diversas (pinturas , piercings, tatuagens, mutilações, etc.), seja pelo vestuário, o homem sempre buscou uma maneira de se diferenciar (tanto para se destacarem enquanto indivíduos quanto para se destacarem enquanto grupo).

Com isso, o corpo passa a adquirir, além de seu caráter biológico e natural, um caráter imaginário/ simbólico, que carrega em si outros significados que posicionam o indivíduo na sociedade em que ele habita.

Na nossa sociedade ocidental contemporânea, o vestuário e a moda se tornaram as principais ferramentas de modificação pessoal. Por ser a roupa uma segunda pele de fácil troca e poderosa força de expressão, acostumamo-nos a utilizá-la como principal meio de auto-comunicação.

Quando nos vestimos não buscamos unicamente cobrir nosso corpo para protegê-lo do clima ou da nossa idéia de moral, buscamos, acima de tudo, encenar e encarar nosso ser social. Usamos a roupa para cobrir ´´nossas vergonhas``, e não falo do nosso sexo, mas sim de todas as nossas insatisfações pessoais. Por isso, a roupa diz muito sobre quem somos, o que pensamos e, principalmente, que posição ocupamos (ou gostaríamos de ocupar) na sociedade.

Por isso, mesmo que não percebamos o fato, construímos uma relação muito profunda com o vestuário, podendo ser qualquer forma de ‘’subversão’’ do ato de se vestir uma poderosa arma escandalizadora.

Isso talvez explique a ‘’comoção’’ causada pelo projeto Chem Ba’e Pire. Porque seu uso é, de certa forma, uma espécie de transgressão do vestuário. Uma pequena oposição ao sistema de moda vigente que exige sempre a apresentação de novidades. Mesmo que se trate de uma peça mutante, que fornece uma variedade considerável de looks, o ato de impor um ‘’uniforme’’ ainda soa com certa agressividade. Como se o ato de coibir do indivíduo sua liberdade de se vestir coibisse também seu direito de ser.

Vestir-se é encenar-se, projetar-se. Propor ao indivíduo uma única maneira de fazê-lo pode provocar um sentido de desconstrução da ordem natural das coisas (mesmo que essa única forma de se encenar possua diversos pontos de vista).

Mas vale lembrar que o uso do uniforme em si não é o causador de tal comoção. Mas sim seu caráter impositivo, sua obrigatoriedade. Ou seja, a coibição do livre direito de se vestir e escolher quais máscaras usar para se projetar em sociedade. Esse ato coibitivo e proibitivo que intriga as pessoas. É ele quem nos leva a pensar como se pode lidar com tal experiência.

Ora, e não seria esse, talvez, um dos principais discursos dos EUA durante a Guerra Fria para ‘’rebaixar’’ a União Soviética? O discurso de que nos países capitalistas o individuo possuía liberdade para consumir (e vestir) o que quisesse? Não seria esse o fato que faz com que acreditemos que somos realmente livres e que vivemos de fato em democracia? Os governos capitalistas do período da Guerra Fria (e até mesmo na atualidade) não eram menos ditatoriais que os governos soviéticos (vide ditaduras militares na América Latina e a caçada aos comunistas nos Eua e Europa), mas a máscara da moda e do consumo livre nos passa a impressão de que a repressão sofrida por nós era menor. Pois, por mais que nos coibissem a voz, ainda possuíamos o corpo e, com ele, a moda.

Com isso podemos pensar que a maior força expressiva da experiência desse projeto não está na peça e sua característica mutante ou no seu discurso de apropriação da cultura indígena, mas sim na proibição/coibição do direito do indivíduo (eu) de se vestir de acordo com seu desejo, no não poder escolher formas diferentes de se encenar e se colocar no espaço coletivo.

Bibliografia:



CASTILHO Kathia. GALVÃO Diana. A Moda do Corpo o Corpo da Moda. São Paulo. Editora Esfera. 2002.


SALTZMAN Andréa. El Cuerpo Diseñado. Buenos Aires. Editorial Paidos. 2005

2 comentários:

  1. Acho mais do que válida a observação do uso do regime de vestuário nos regimes políticos. É um tema que não só deve ser mencionado como é muito pouco explorado, não só no que diz respeito à moda, cultura em geral, mas em todos os outros âmbitos da modernidade. A essencial relação entre a maneira como nos comportamo-nos e a maneira como nos levam a nos comportamos foi muito bem exposta. Além disso, as idéias da roupa como força de individualização em uma sociedade que sempre busca mais e mais a diferenciação, e o incômodo gerado pela negação dessa diferenciação são altamente corretas, pois apresentam dois pontos: primeiro, que essa força de fato existe, pois a negação dela serve exatamente como a exceção que comprova a regra; em segundo lugar, que a moda como obrigação, levanta a questão sobre até que ponto essa "individualização" é pessoal, privada e, no mínimo, arbitrária. Cabe lembrar por último, para uma posterior discussão, até que ponto essa imposição de ser diferente é relevante se for analisada sob o ponto de vista de uma indústria de moda "instrumentalizada" (usando termos da teoria crítica de Adorno e Horkheimer, cujo uso poderia ser de ajuda) anula a individualização e traz todos sob o único jugo de uma sociedade de massas.

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  2. Seria lindo um dia fazer alguma analise de um outro ponto de vista.
    Um que particularmente me fascina: o naturismo.

    Se no seu projeto voce abre mao do seu "livre arbitreo" para um estudo da relação roupa/individuo, como seria o estudo da relação individuo por si só?
    Acho "prafrentex" a forma como essas pessoas encaram os proprios corpos, da forma natural como deve ser.
    Alias, ate em outros países rola essa "naturalidade" em ver o outro nu e expor o próprio corpo. Do ponto de vista dos proprios estrangeiros nossa visão de "vergonha do corpo" é estranha, conservadora e no minimo uma contradição ao culto e fascinio que os brasileiros tem pela beleza física. Desde criança somos ensinados que expor o corpo é "feio" ou "errado" e mesmo quando não sentimos constrangimento quanto à nossas genitais sempre há no mínimo um desconforto em mostrar partes do corpo com as quais não estamos satisfeitos como barriga ou a pele de determinada parte do corpo.
    No naturismo abre-se mão da possibilidade de assumir identidades e mais do que isso, assumir nossos corpos, aquilo que não escolhemos como deve ser e não exatamente por isso não traduz de forma alguma quem somos. Este ponto e vista poderia, se estudado a fundo, gerar uma oposição a todas as idéias por você aqui expostas e creio ser por isso uma possibilidade a ser estudada e quem sabe, executada.

    Perdoe se me prolonguei demais e fui pouco claro em minhas ideias ;)

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