sábado, 1 de janeiro de 2011

Che Ae (Eu mesmo)

Relatórios finais Parte 3

E o que tenho a dizer hoje, no dia em que deveria de fato estar a abandonar a experiência:

Primeiro: aos que reclamam que uso muito vermelho e que acham que eu não tenho o direito de usar essa cor porque a usei por tempo demais no período de experiência da peça: o vermelho é meu e eu uso quando bem entender. Vermelho é minha cor favorita, exatamente por isso coloquei a cor na minha roupa e não pretendo deixar de usar roupas vermelhas tão cedo.

Segundo: aos que brigam comigo quando eu uso a calça ou a camisa do Che Mba'e Pire. A calça e a camisa são bonitas, fui quem fiz. Fiz nas minhas medidas, para mim usar. Então não vejo porque não usá-las só porque não preciso mais delas para o tcc. Para mim não há nenhum motivo que torne o uso dessa peça um tabu para o resto da minha vida.

Terceiro: demorei muito para atualizar o blog porque: estava trabalhando muito com figurinos que quase me deixaram louco. Precisava de um tempo de distanciamento total da experiência, do tcc e de tudo o mais para colocar minha pobre cabecinha no lugar e não conseguia achar (não que eu tenha morrido de procurar) os papéis onde havia escrito os relatórios que postei anteriormente.

E por fim, tem uma pilha de livros de psicologia na minha frente esperando para serem lidos. Agora é hora do referencial teórico e tudo o mais. É uma etapa nova.
Ando redescobrindo aos poucos um novo modo de me vestir, de me portar, de ser eu. É um processo um pouco lento, mas que está a correr de um modo muito natural. Estou mesclando minhas principais referências: o rock e o orgulho latino, e experimentando o modo como elas se comportam juntas. Hoje consigo me olhar no espelho e ver o meu reflexo. Como dito no início do blog: a experiência foi um rito de passagem para uma visão mais adulta de mim mesmo. E estou realmente satisfeito com os resultados finais. Espero ficar satisfeito com o resultado do tcc também.

E não vou abandonar o blog. A medida que for coletando minhas referencias teóricas e chegando a conclusões e divagações novas eu vou postando aqui.

E, para não perder o costume, uma foto atual:

Relatórios finais Parte 2

O segundo relatório pessoal de abandono da peça, escrito uma semana após o abandono da peça:

''Depois de parar de usar a peça, tomei consciência do seu peso físico e do quão quente ela era. Hoje percebo o quanto ando menos cansado ao final do dia e vejo o quanto ela me desgastava fisicamente. Seus botões de metal, os tecidos pesados e a dupla face da camisa contribuíam para que a peça fosse um tanto quanto desconfortável  fisicamente.

Creio que eu possa ter, em partes, confundido esse desgaste físico com o desgaste emocional. E o fato de eu estar imerso em uma rotina de trabalho muito pesada, contribuiu para que eu me desgastasse mais, e de modo mais pesado, com a peça e seu uso.

Hoje me sinto leve (fisicamente falando, sem metáforas emocionais) e consigo passar a maior parte do dia sem me sentir cansado nem esgotado. O calor me incomoda menos e meu corpo responde melhor ao dia a dia. Engraçado que só fui perceber o quanto o peso físico da peça me incomodava ao abandona-la. E hoje, ao me livrar desse peso, sei que o fator físico possa ter tido uma contribuição primordial na minha decisão de abandono.

O fato de eu estar inserido em uma rotina pesada de trabalho, submetido a uma carga grande de stress emocional associada ao desconforto físico causado pela roupa fez com que eu desistisse da roupa.

No mais lamento não ter ido a nenhuma festa de gala e a nenhuma viagem durante o uso da peça. E agradeço pela oportunidade de me conhecer e me analisar com tamanha profundidade. 

Hoje tenho claros muitos fatores da minha personalidade que antes pareciam turvos e confusos. Sinto-me mais seguro e mais senhor de meus domínios. Esses últimos meses passaram para mim como anos, de modo que me sinto velho (muito mais do que velho do que minha idade) e muito diferente do jovem quase adolescente pseudo-revolucionário que era quando comecei. E, por isso, não me sinto à vontade com minhas roupas antigas, pois, sinto que elas não condizem com minha idade interna. E mentem quando vendem a imagem de que sou uma pessoa despojada e livre, simplesmente contestatória, ao passo que não o sou mais.

Hoje me baseio ainda na contestação (principalmente, no momento, ao mercado de moda e seu funcionamento) mas não do mesmo modo que antes. E creio que devo encontrar um modo de expressar isso pelo vestuário.

Ouço muito as pessoas dizerem que dou muita importância ao aspecto visual. Isso é verdade. Mas o que ''casa de ferreiro, espeto de pau'' uma ova! Trabalho, estudo e pratico visualidade o tempo todo. Todas minhas referências são extremamente visuais, tudo para mim se resume a formas, cores, traços, composições... não consigo ignorar a importância e o peso disso.

Para mim, não estou a dar importância demais para a visualidade. Estou apenas vivendo o que é importante para mim: existir, lutar e viver por uma moda menos ordinária. ''


No mais pretendo dizer que comecei essa experiência cortando meu rosto na foto e terminei ela encarando a câmera. É apenas um detalhe, mas que, para mim, tem todo um significado.

Relatórios finais Parte 1

Relatórios escritos durante as primeiras semanas de não uso da peça:

''Estou fragmentado. Olho para o espelho e vejo um espaço vazio que não se comunica. Não sei mais o que cabe em mim. Desde que deixei de usar a peça, sinto uma ligeira falta de lugar. Como se meu corpo estivesse perdido no espaço, fora do tempo.

Minhas roupas já não me cabem mais. Joguei mais da metade delas no lixo. Elas não se encaixam em mim. Sinto-me um farsante dentro delas. Eu não pertenço mais a isso, a esse vestuário rocker quase adolescente. Para mim, ele não comunica mais nada de verdadeiro. Não tem mais nenhuma existência.

Não estou negando (e muito menos abrindo mão) da posição política, ideológica e contestatória que é e foi o Rock. Mas afirmo que o movimento foi (há tempo) digerido, consumido e desmistificado pela sociedade(e devidamente acoplado ao consumo de massa). E hoje seu peso de comunicação e contestação já não é mais o mesmo.

E isso reflete na minha experiência no ponto em que, ao assumir (de volta) esse vestuário, eu passo a assumir um padrão social (visto que até mesmo o ato de contestar através do rock fora padronizado) no qual não quero me encaixar.

Sinto falta da força de comunicação, do orgulho latino, do discurso embutido na Che Mba'e Pire. Da sua elegância e requinte e do poder de comunicação que ela tem. Sinto-me vazio de discurso, dissolvido na massa, sem cultura, identidade, discurso... e eu acho muito cômoda essa postura de não ser ninguém, de dizer nada e seguir em frente. Estou vazio e solto no ar.'' 

Esse foi o primeiro relatório escrito após o uso da peça. Foi produzido dois ou três dias após o abandono do uso da peça.